Jó e o não lugar do sofrimento.

Jó e seus três amigos

O Senhor disse a Satanás: "De onde você veio? " Satanás respondeu ao Senhor: "De perambular pela terra e andar por ela".
Disse então o Senhor a Satanás: "Reparou em meu servo Jó? Não há ninguém na terra como ele, irrepreensível, íntegro, homem que teme a Deus e evita o mal".
"Será que Jó não tem razões para temer a Deus? ", respondeu Satanás.
"Acaso não puseste uma cerca em volta dele, da família dele e de tudo o que ele possui? Tu mesmo tens abençoado tudo o que ele faz, de modo que todos os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra.
Mas estende a tua mão e fere tudo o que ele tem, e com certeza ele te amaldiçoará na tua face. "

Jó 1:7-11

Existia na terra de Uz um homem chamado Jó. Era um homem íntegro e justo; temia a Deus e evitava o mal... assim começa o livro de Jó, um dos livros mais conhecidos da Bíblia e um dos mais comentados também. Isso porque ele trata de uma questão universal, o sofrimento. Podemos ver diferentes abordagens que, em geral, caminham para indicar a transcendência de Deus em relação as vicissitudes do homem, pois como a própria Bíblia costuma definir, o homem é fugaz como a névoa que desaparece com o raiar do dia.

Transcendência porque todo o enredo delineado durante o livro não se resolve. O drama de Jó e a discussão com seus amigos acusadores avançam até o ponto em que Deus aparece. Aqui você acha que Deus irá revelar uma "moral" sobre o que aconteceu, como geralmente acontece nos filmes de hollywood, mas Ele não explica nada. Deus simplesmente anuncia sua majestade e fecha o livro sem explicar a Jó o por que de tudo aquilo.

Levando em conta o desfecho, podemos concluir que o que aconteceu com Jó foi algo bom, pois ele próprio diz "Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te viram". Uma interpretação comum seria a de que nossas desgraças teriam como finalidade a criação de um relacionamento mais profundo com Deus. Isso nos consola, confere um sentido às nossas frustrações e assim podemos confiar que, apesar de tudo, existe um bom motivo para estarmos sofrendo.

Acontece que o livro não é assim tão fácil. O diálogo incial entre Deus e Satanás não parece uma discussão entre o bem e o mal, se parece mais com um coffee break, nada que lembre o diálogo entre pastores e demônios ou entre o padre e os possuídos dos filmes... nenhuma palavra de ordem, apenas um "Reparou meu servo Jó?". Desta conversa tranquila, Deus libera Satanás para aniquilar todos os bens de Jó, sua saúde, seus filhos, tudo é destruído.

A ideia de Satanas é que Jó só é fiel porque Deus o abençoa, enquanto que para os amigos de Jó, este só é justo porque Deus o abençoa. Isso é o sinal de que o que existe entre Deus e Jó está além do que qualquer outro ser possa perceber, porque ao final todos estavam errados. A minha pergunta é: o que existia entre Deus e Jó? Para Satanas, Jó precisa das bençãos de Deus para permanecer fiel, para os amigos acusadores, Deus precisa da fidelidade de Jó para abençoá-lo. Estes dois pontos de vista são o que eu entendo como a religião vazia, que desconsidera a transcendência de um relacionamento com o divino.

Satanas e os amigos de Jó são aqueles que perguntam: para que seguir a Deus? Qual é a finalidade de buscar a Deus senão para garantir a vida? Estamos bem, temos dois carros e plano de saúde... pra que Deus? Ou aqueles que seguem a Deus por angustia, por sofrerem uma vida sem significado, usam a Deus como um suporte para suas expectativas. Agora eu sou justo, tudo está garantido... inclusive a vida eterna no paraíso. O livro de Jó foi escrito para a religião que faz sentido, que não ultrapassa o humano.

Quem é o Todo-poderoso, para que o sirvamos? Que vantagem nos dá orar a ele?

Jó 21:15

O percurso que nos leva a Deus não é uma linha reta, respeita um de ciclo de criação e destruição do qual saímos amadurecidos, não podemos pular etapas. A verdade do relacionamento entre Deus e Jó é que o sofrimento se manifesta como o fio de Ariadne que o conduz para um relacionamento de outro nível com o divino.

Quando a prosperidade de Jó declina ele clama por justiça, tentando mostrar à sociedade que sua causa é justa e que Deus também o é, mas fica difícil explicar o que lhe aconteceu sem dizer que Deus é injusto. Este é o problema de vincular sofrimento e ética, pois quando fazemos isso Deus se torna um governante ditatorial que distribui bens e desgraças apenas seguindo seu bel prazer, afinal sabemos bem que crianças palestinas não são culpadas pelo que sofrem, assim como a natureza não é uma instancia inferior de existência que mereça ser explorada pela humanidade.

A criança órfã é arrancada do seio de sua mãe; o recém-nascido do pobre é tomado para pagar uma dívida.
Por falta de roupas, andam nus; carregam os feixes, mas continuam famintos.
Espremem azeitonas dentro dos seus muros; pisam uvas nos lagares, mas assim mesmo sofrem sede.

Jó 24:9-11

Quando algo em nós muda, mas ainda não estamos prontos para isso, tudo parece um absurdo.

Jó amava a Deus e tentava preservar seus filhos por meio de holocaustos constantes, mas o que fica claro é que a religião de Jó não conseguia explicar a sua situação. O sofrimento de Jó o coloca diante de Deus como em um "não lugar", e agora ele consegue contemplar o sofrimento de uma perspectiva mais ampla, não mais traduzindo o fato da vida em termos humanos, mas, quando ele se aproxima da miséria de coração aberto, sentindo este sofrimento sem razão.. ele clama à Deus.

"Contudo, se falo, a minha dor não se alivia; se me calo, ela não desaparece.
Sem dúvida, ó Deus, tu me esgotaste as forças; deste fim a toda a minha família.

Jó 16:6

Por isso eu não concordo com religião que traduz o sofrimento pela chave ética. O sofrimento é algo existencial, e o mergulho nestas águas não contempla mais o certo e o errado. Sofrer sem sentido é algo insuportável, e parece que possuímos vários acusadores dentro de nós que procuram justificar o que sofremos, dar uma explicação e uma solução rápida. O encontro com Deus, infelizmente, não depende de nossas respostas e como Jó percebeu, "a dor não se alivia" pelos bons argumentos.

Jó é um enorme paradoxo e a verdadeira religião está aqui.

Quando estamos desamparados é o momento em que Deus se revela, nos aproximamos Dele pelo caminho único do sofrimento. Aí, quando alcançamos o chão, parece que alcançamos uma comunhão com todos os seres, sendo o sofrimento apenas uma espécie de névoa que logo desaparece.

"It is not a bad feeling when you're knocked out," he said. "It's a good feeling, actually. It's not painful, just a sharp grogginess. You don't see angels or start; you're on a pleasant cloud. After Liston hit me in Nevada, I felt, for about four or five seconds, that everybody in the arena was actually in the ring with me, circled around me like a family, and you feel warmth toward all the people in the arena after you're knocked out.  Gay Talese escreve sobre o nocauteado Patterson no artigo "The Loser".

A dor que nos rasga de alto a baixo não faz senão nos abrir para uma experiência maior, mas isso só é possível quando desistimos de fugir da realidade árida do sofrimento, quando deixamos de nos esquivar, caindo desacordados sobre o solo de nossa miséria, neste momento, Deus se revela no meio da tempestade. 

Este é o momento em que ouvimos o Sermão do Inanimado.


"As plantas, as rochas, o fogo, a água, tudo é vivo. Eles nos observam e percebem nossas necessidades. Eles percebem quando não temos nada para nos proteger... e é então que eles se revelam e falam conosco." Um velho Apache conta esta história a Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces. 


A dor de nossa miséria não deve ser minimizada por uma religião que explica tudo. Isso não nos deixa alcançar este lugar especial de comunhão com o divino, não nos permite enxergar que o caminho que nos leva para um encontro com Deus é o caminho de nossas fragilidades e de nossa solidão.




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